23/09/2011

 

 

Os 'velhos' relojoeiros e as novas tecnologias

Por Camilla Veras Mota

O Reno corta a Europa por 1.2 mil quilômetros e cinco países, da Áustria aos Países Baixos. Nos séculos XVIII e XIX, o rio foi uma das mais importantes rotas comerciais do continente.

Ele começou a ser definitivamente povoado ainda no período medieval, com centenas de pequenas fortificações que ainda hoje se debruçam sobre suas margens.

Provavelmente para nenhuma dessas antigas fortalezas ele é tão significativo quanto para a pequena Schaffhausen, cantão suíço na divisa com a Alemanha.

Por estar situada na margem direita do rio, ela foi confundida com o território alemão pelo exército americano em 1º de abril de 1944 e, por isso, foi duramente bombardeada por 50 aviões B-24 Liberator.

Uma das poucas cidades da Suíça - que desde o século XVII não se envolve diretamente em conflitos armados – bombardeadas durante a Segunda Guerra Mundial. Aqui, o limite entre os dois países é, de fato, tênue - a estrada de asfalto impecável que hoje liga o aeroporto de Zurique a Schaffhausen em 40 minutos entra em território alemão pelo menos duas vezes.
Mais, o cantão divide com Zurique as cataratas do Reno, as maiores da Europa. No verão, visitantes de regiões próximas fazem fila no píer onde aporta o barquinho que leva ao mirante no topo da cachoeira. Os poucos turistas brasileiros que chegam até lá geralmente se surpreendem. Os 23 metros de altura da queda, a maior do continente não custa frisar, são quase um quarto do tamanho de Iguaçu. As cascatas são menores, aliás, do que muitas da Chapada Diamantina, Chapada das Mesas, dos Veadeiros...

Também por causa do Reno, a cidade é a única do lado leste da Suíça, o alemão, dona de uma grande marca de relógios, a IWC - Rolex, Breguet, Philippe Patek e outras tantas ficam na parte francesa. O potencial energético do rio foi o que motivou o americano Florentine Ariosto Jones a preterir o lado oeste quando migrou de Boston para a Suíça em 1868 para produzir seus próprios relógios de bolso de alta qualidade.

Naquela época, a mão de obra suíça era mais barata que a americana.

Jones começou a construir em 1875 o prédio que é até hoje sede da IWC e, cinco anos depois, vendeu a empresa para a família Rauschenbach, suíça. A companhia mudou de dono ainda algumas vezes até ser finalmente adquirida pelo grupo sul-africano Richemont no ano 2000.

E ainda hoje, 143 anos depois, o Reno é parte importante do cotidiano da empresa.

A extensão envidraçada construída junto à sede centenária em 2005 para dar conta do súbito crescimento sustentado especialmente à custa dos novos ricos chineses revela uma panorâmica hiperbólica do rio. Há poucos quarteirões dali, cisnes e patos se exibem diante das janelas da universidade relojoeira da IWC, onde jovens de 16 anos passam quatro anos entre apostilas, engrenagens, pinças e parafusos mínimos. Markus Kaufmann, professor, admite que a tentação é grande, mas afirma em um alemão falado em voz mansa - e com os grandes olhos azuis em seus alunos -, que um bom relojoeiro tem que aprender a se concentrar para dar conta dos movimentos, especialmente dos mais complicados. "Pra compensar, no verão nós aproveitamos a hora do almoço para tomar banho no rio", completa, para desconcerto dos engravatados que acham que "desestressar" é fumar um cigarro no pátio do escritório.

O galpão alugado da SIG em Neuhausen, município vizinho, para onde foi transferida boa parte da produção em 2009 - reflexo de um processo de verticalização da companhia, que passou a se esforçar para produzir praticamente todos os seus componentes -, é o único sem vista molhada. Uma pena, já que o complexo (dividido com Alston e Swiss Arms) está a algumas dezenas de passos da tal da maior queda d'água da Europa.

É ali, entretanto, que a IWC guarda alguns seus maiores segredos.

Em contraposição ao trabalho artesanal dos 40 relojoeiros que trabalham oito horas por dia com suas pequenas lupas presas à testa e uma caixinha de ferramentas cujo conteúdo pouco mudou nos últimos séculos, a fábrica concentra tecnologia de ponta.

Máquinas de extrema precisão de marcas como Nakamura-Tome e Sodick AP200 estão distribuídas entre o térreo e o primeiro andar e estão encarregadas de produzir caixas, pratos (a superfície que recebe as engrenagens) e pequenos componentes. No segundo piso, em uma pequena salinha onde o rádio está sempre ligado, seis mulheres bem arrumadas – maquiagem, brincos e, eventualmente, um relógio (da IWC, obviamente) - inspecionam algumas peças no microscópio para ter certeza de que o trabalho mecânico foi de fato impecável. O que não passa pelo controle de qualidade das moças pode ser descartado ou, como acontece com metais valiosos, como o ouro, é repassado para reciclagem.

O polimento e acabamento também são feitos manualmente. Os aspirantes a polidores, aliás, fazem um curso de dois anos para aprender a manusear dezenas de lixas diferentes e a perceber a diferença de brilho sutil que cada um dos metais usados na fabricação de um relógio pode emitir.

Do operador de máquinas ao bem humorado curador do museu da IWC (visitas agendadas pelo O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.), David Seyffer, toda a equipe que trabalha na companhia tem opinião semelhante sobre a importância da marca para a cidade - "os habitantes de Schaffhausen se orgulham de sua fábrica de relógios assim como os de Stuttgart o fazem com suas marcas internacionais de carros", afirma Seyffer - e sobre a identidade da companhia.

A IWC é conhecida, e quer continuar sendo, como uma marca de precisão. Suas criações dificilmente vêm cravejadas de joias, mas chegam a ter até nove dias reserva de marcha (que representa quanto um relógio mecânico consegue seguir funcionando sem ser movimentado), calendário perpétuo e até horário sideral e mapa de estrelas. Estes dois últimos são atributos do Portuguese Sidéral Scafusia, o mais recente e mais ambicioso lançamento da marca, que está sendo vendido a US$ 750 mil.